A guitarra de Prata foi por 127 anos simbolo de tradição carioca no mercado da música. Agora com as portas fechadas, questionamos o que é mais importante: Nossa história ou o dinheiro?
Após manter-se por 127 anos como uma das principais referências na comercialização de instrumentos musicais e partituras no centro da cidade do Rio de Janeiro, a tradicional loja A Guitarra de Prata foi despejada por quem realmente possui a prata. Fazendo jus a seu nome, o banco Opportunity aproveitou a oportunidade dessa cidade maravilhosa (para os negócios) e comprou 18 casarões na Rua da Carioca. O reajuste do aluguel pedido à loja foi de mais de 100% – ao invés dos 7 mil anteriormente cobrados, o banco passou a querer 15.
Foi também a prata que circula nas veias abertas da especulação imobiliária que extinguiu outro comércio considerado “prata da casa”: a livraria São José, um tradicional sebo dotado de uma invejável coleção de livros, há 74 anos funcionando no mesmo ponto, a livraria sangrou sua última gota perante a seqüência de apunhaladas que resultaram no aumento do aluguel em 150% – de 8 para 20 mil.
O bar Luiz, com a mesma idade da Guitarra de Prata, foi alvo de uma estratégia malandra da prefeitura: comprar o imóvel, impedir o despejo e ficar bem na fita com os cariocas, por esse motivo, o longevo bar não corre mais o risco de ter seu aluguel aumentado de 10 para 35 mil, como queria o banco que arrendou o coração do centro da cidade.
É curioso que os universos simbólicos trazidos por esses três ramos comerciais, que envolvem o deleite e o aprendizado da leitura, a atividade lúdica de tocar um instrumento e o prazer da sociabilidade durante a degustação de chopes e acepipes, sejam esquecidos em prol da construção de novas agências bancárias ou da mera especulação, promovida por um grupo de empresários liderados por aquele cara gente boa, íntegro e jamais envolvido em escândalos internacionais de corrupção chamado Daniel Dantas.
Ao falar do arrendamento da cidade maravilhosa de prata, fiz acima uma referência ao título do livro “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. É que a Guitarra de Prata me fez lembrar da boliviana cidade de Potosí, esta sim realmente feita de prata, tal a abundância do metal precioso por lá. E daí o grande interesse dos conquistadores espanhóis na terra da prata: segundo relatou Galeano, “em Potosí a prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura… para arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosí os capitães e ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o desenvolvimento da Europa”.
Se trocarmos a prata pela terra, que é objeto de luta no mundo rural e de despejo e especulação nas grandes metrópoles, veremos que o modus operandi pouco mudou nesses últimos séculos. Os terrenos é que reluzem, e não as guitarras, os chopes e os livros de prata: estes, no mundo da prata que pobre não cata, são como se fossem de lata.